quinta-feira, 30 de junho de 2011

AZ - Doe or Die (Brooklyn, NYC, New York, EUA. 1995)



É irônico como funciona o mundo musical, e tal fator acontece igualmente com o rap. Quem ama um determinado gênero, acaba conhecendo bandas ou artistas que passam uma vida inteira lançando álbuns, sem maiores sucessos. Outros, sucumbem após uma música mega-hit (Os famigerados one-hit-wonders), enquanto outros demais fazem sucesso trilhando o caminho por diferentes estradas. O interessante, em todos os casos, é sempre analisar como um determinado artista ou banda conseguiu o sucesso. O que aconteceu, como aconteceu e quando aconteceu. São histórias quase que bastidoras, que refletem sempre um passado que serve como pano-de-fundo para todas as atitudes presente destes músicos. Logo, não é diferente com este excelente rapper, AZ, a quem iremos dedicar as próximas linhas. A história de AZ é muito boa, e sua ascensão confunde-se com a própria "re-ascensão" do rap nova-iorquino, lá na metade dos anos 90.

Anthony Cruz (AZ) nasceu no Brooklyn, no dia 9 de março de 1972, o que o torna meu quase-companheiro de aniversário. Descendente de afro-americanos e dominicanos, AZ começou a rimar cedo, logo nos anos 80, tal qual é comum dentre o passado dos demais rappers desta época. Porém, tudo iria mudar no ano de 1994. Como já escrito anteriormente, AZ participou da música Life's a Bitch, do rapper Nas, no álbum Illmatic (clique aqui). Tal disco foi um verdadeiro marco-zero para a re-ascensão do rap nova-iorquino, e a única participação de Anthony Cruz em todo o álbum abriu as portas de sua carreira. Life's a Bitch foi uma das grandes músicas do ano, e um desconhecido Anthony ganhava cada vez mais notoriedade dentro do rap de Nova York. AZ passou a chamar a atenção de produtores e também de grandes gravadoras, como a EMI, que assinou contrato com ele, logo na sequência. Um verso apenas. Era tudo que AZ precisava para ter uma carreira de músico.

Foi neste exato cenário, que Anthony passou a gravar seu então sonhado primeiro álbum. Já sob as asas da EMI (que viria a ser incorporada pela Virgin Records mais tarde), AZ começou a gravar as músicas de Doe or Die, um dos maiores clássicos do rap de Nova York. Nos Estados Unidos, "Do or Die" (Faça ou Morra) é uma frase de expressão equivalente ao nosso "Ou vai ou racha". A ambiguidade da genialidade do título está na palavra "Doe", que significa "Louco". Por sinal, inteligência e genialidade são duas constantes ao longo deste excelente álbum. Metáforas, sarcasmos, realismos, e uma narrativa ofensiva em primeira pessoa, mostra os pontos de vista de AZ diante de uma Nova York em transformação. Um clássico. Doe or Die é um dos quatro álbuns (ao lado do OB4CL do Raekwon, It Was Written do Nas e Reasonable Doubt do Jay-Z) a lançar o Mafioso rap enquanto sub-gênero dominante dentro do rap da cidade de Nova York, nos anos 90. A linha mafiosa trabalhava o bate-cabeça de sempre, mas conectando temáticas referentes ao mundo do crime organizado, via gírias como códigos, metáforas complexas, materialismo, entre outros fatores. Ao contrário do que pode ser pensado inicialmente, o gênero Mafioso rap não é a ostentação pura e burra. Ele possui todo um contexto nos bastidores, especialmente na referência ao poder (Como chegar ao poder e como mantê-lo) e na dualidade entre mundos diferentes (as riquezas e as ruas), por onde estes rappers trilhavam tranquilamente. As dualidades são muito importantes para uma maior compreensão não só do gênero Mafioso rap em si, como especialmente deste magnífico trabalho de AZ.


Pode-se iniciar a linha de raciocínio sobre Doe or Die, ao partir do ponto em que este disco reflete o outro lado da moeda de Illmatic, do Nas. Vejo que estes dois álbuns estão incrivelmente conectados e relacionados entre si, fator este previamente descrito por Stanton Swihart, um crítico do site Allmusic. Segundo ele, "os dois discos são, por completo, os dois lados de uma mesma moeda. Estes trabalhos estão tão conectados, que de fato torna-se difícil apontar em quais pontos é possível localizar a separação do Doe or Die com Illmatic. Certamente, este álbum foi um dos mais fortes e mais promissores de 1995". Indo além, a conexão pode ser estabelecida não apenas pela pouca quantidade de faixas, como principalmente pelo estilo similiar de produção, pela extrema proximidade genial e intelectual entre AZ e Nas (Assim como a amizade entre ambos), e também pelo fato do álbum Doe or Die focar a temática Mafiosa como eixo principal dos versos através das músicas. Tal eixo serve como variação ampla do Illmatic, por meio de um espelhamento, onde o prévio trabalho de Nas com participação de AZ se encontra, um ano depois, intrínsicamente ligado às ruas por meio do poder capital. Mais à fundo, as produções são épicas. Claro que nem todas as músicas. Considero a faixa “I Feel For You” a mais fraca do disco, por culpa de uma produção simples demais, apesar de sua letra, ao tratar de perseguições protagonizadas pela polícia de Nova York à vida de AZ, ser muito boa, rica em metáforas e em levada. O time de produtores do álbum que vale a pena o destaque é formado por: Pete Rock, Buckwild, N.O.Joe, L.E.S, Dr. Period.


Vamos começar pelo grande destaque de Doe or Die com uma música simplesmente épica, atemporal, apesar de sua completa conexão com a atmosfera fotográfica e musical do ano de 1995: Rather Unique (Sou Único). Se este disco fosse uma completa porcaria, mas contasse com este som, seria grandioso. Em primeiro lugar, o instrumental de Pete Rock é simplesmente magnífico. Parece simples de início, mas o grave contínuo, e os timbres tocados por entre a batida nos levam a uma paradisíaca, fria e nublada Nova York. O instrumental de Rather Unique é carregado com ares de tristeza, melancolia e meditação. É o tipo de som perfeito para ficar pensando e refletindo debaixo das chuvas congelantes dos meses de inverno, especialmente se acompanhado de alguma garrafa de tubão. Pete Rock é mestre e consegue sempre sintetizar toda uma atmosfera, todos os sentimentos, todas as angústias e pensamentos, em apenas um instrumental. A batida é perfeita e ideal pra AZ, que chega arregaçando nos versos, mostrando o quanto Nova York estava perdendo com Giuliani, e o quanto ele (AZ) não podia perder com críticos, com perdas de tempo, com pequenos problemas da vida:



We was already loyal to people's minds and mulianis
Now we more fucked up with a mayor named Giuliani
You can try to bomb me, analyze but can't define me
My mind's divine heavily entwined with Ghandi's
Far from feeble, I leave your nostrils hard to breathe through
Cause my cerebral's are more of a higher plane than the Hebrews


Nós já éramos leais aos desejos do nosso povo
Agora nós estamos ainda mais ferrados com um prefeito chamado Giuliani
voce pode tentar me ferrar, me analisar, mas nao pode me definir
minha mente está totalmente chapada de maconha
longe de ser fraco, eu faço com que seu nariz nao consiga respirar
porque meu cérebro está num plano mais alto do que os Hebreus





Outro trecho espetacular de Rather Unique, de tirar água dos olhos, é a reflexão questionadora que AZ faz antes da primeira leva de scratches de Pete Rock, no refrão: So where it all begins is here, destiny and me finally meet. So how can I be weak? I'm rather unique. Então onde tudo começa é aqui, o destino e eu finalmente nos encontramos. Como posso ser fraco? Sou único. Tais reflexões tornam-se uma constante por todo o álbum, sempre conduzidas ao lado das metáforas complexas e da inteligência em alto nível. AZ usa e abusa de fatos históricos para descrever sua persona em meio às guerras da vida, especialmente no tocante referente ao jogo de poder, o foco central do disco. Em outro momento absurdamente monumental, está o dueto entre Anthony e Nas, na música clássica Gimme Your’s. Em conjunto com alguns parágrafos atrás, não é difícil reconhecer o fato da música Gimme Your’s ser um contraposto de Life’s a Bitch. As similaridades encontram-se nos versos, retratando o banditismo das ruas de uma forma quase que sem esperança, e também no instrumental produzido novamente por Pete Rock. Uma musicalidade carregada, sinistra, repleta de sintetizadores que induzem o ouvinte novamente pelas ruas gélidas de NYC, acompanhado dos versos ricos de AZ descrevendo não apenas a materialidade, como também ao denunciar a falsidade das mulheres diante de posições privilegiadas, ao relatar o jogo de xadrez estabelecido nas ruas pela infinita e incansável ascensão via criminalidade, e ao estabelecer parâmetros para concluir que é preciso ter o mundo em mãos. Just gimme what you can’t get back: Apenas me dê aquilo que não terás de volta. O refrão conduzido por Nas é brilhante, tanto na voz, quanto na leveza de seu timbre, deixando a música tão redonda que os ouvidos agradecem quando ela é tocada. Quer mais? A versão remix de Gimme Your’s, lançada em versão single e produzida pelo mestre Erick Sermon consegue ser tão rica quanto a versão do álbum. Naquele instrumental, uma proximidade com o G-Funk é completamente estabelecida, e a tranquilidade casa novamente com os versos de AZ e os refrões de Nas.

O G-Funk volta a se tornar presente neste belo álbum, através da produção de N.O.Joe, com a música título Doe or Die. A música é mafiosa por natureza, e o viés interessante está justamente no fato de um MC de Nova York cantar sob um instrumental que serve como uma luva aos demais MC’s da Califórnia. A combinação é letal, e novamente os ouvidos agradecem. O refrão da música Doe or Die faz uma relação com o refrão feito por Grandmaster Flash no clássico The Message, em 1982: It's like a jungle sometimes. It's like a jungle sometimes, the weed smoke makes me wonder: How I keep from going under. Ás vezes é como uma selva. Ás vezes é como uma selva, e a fumaça da erva me faz pensar, como faço pra não me acabar? A versão remix desta grande música, foi produzida por RZA, e poderia ter sido lançada neste trabalho. Contribuiria ainda mais para o enriquecimento deste álbum, que já é um clássico por natureza.


A música que consegue sintetizar o ambiente fotográfico da capa, dos próprios videoclipes, e da atmosfera mafiosa que tomava conta do rap nova-iorquino é, sem dúvidas, a faixa Mo Money, Mo Murder, Mo Homicide (Mais Dinheiro, Mais Mortes, Mais Homicídios). Um dueto incrível de AZ e Nas sela, por definitivo, o surgimento da banca The Firm, que viria a lançar um ótimo trabalho em 1997. Neste álbum é possível perceber a evolução de Nas, de Nasty pra Escobar, em uma completa transformação e amadurecimento. Os versos de Nasir Jones nos transportam aos cenários criminais, protagonizados por ternos, vinhos caros, charutos, enquanto AZ simplesmente não abaixa o nível: Mantém como deve ser. O instrumental, calmo, rico, flui tranquilamente com um sample de O’Jays (Cry Togheter). Destaque para uma pequena música, uma espécie de “outro”, chamada “Born Alone, Die Alone” (Nascer Sozinho, Morrer Sozinho), em que AZ mostra sua completa solidão em meio às turbulências deste tipo de vida. O instrumental consegue ser mais arrepiante ainda, ao samplear a queda de uma chuva e dar ecos à voz de Anthony, em um de seus momentos mais introspectivos do álbum Doe or Die. Simplesmente espetacular.

O grande single deste disco foi a música Sugar Hill, onde AZ claramente tentou focar o público mainstream. A música é fantástica, muito bem produzida por L.E.S, e a beleza dos versos está contida exatamente no estabelecimento de mais metáforas, que conectam o sonho de se tornar alguém na vida, com a realidade presente ainda em movimento para tal direção, a Sugar Hill (Montanha Doce). Aos homens presentes neste blog, ainda há a surpresa com a ótima Ho-Happy Jackie, que descreve o funcionamento de uma mulher interesseira, piranha por natureza, que não pensa duas vezes em atravessar qualquer pessoa que tenha relativo destaque financeiro. No caso, o sarcasmo e o humor são muito bem utilizados, acompanhados de um grande beat fornecido por outro mestre dos instrumentais de Nova York, o saudoso Buckwild.


Falar sobre o álbum Doe or Die não é apenas falar sobre a vida, as ambições, aspirações e sonhos de Anthony Cruz. É também falar sobre um tipo de musicalidade rica, não existente mais no rap norte-americano. É falar sobre o que foi o Mafioso rap em tempos que Nas disputava o trono da cidade com Notorious B.I.G e Jay-Z. Falar sobre Doe or Die é falar sobre rap, na sua mais pura forma, em seu mais puro momento. Doe or Die é complexo, irredutível, e está completamente relacionado aos clássicos de uma geração que não volta mais. Lançado no dia 10 de outubro de 1995, o álbum atingiu grandes posições nos charts da Billboard, chegando à 15ª posição nos Top 200, e liderando os Top R&B/Hip-Hop Albums daquele momento. Apesar de ter vendido bem, não foi o suficiente para colocar AZ entre os top-rappers do cenário mainstream, algo que Nas conseguiu com mais facilidade. Falta de publicidade? Letras mais ousadas? Pouco importa. AZ é um daqueles raros mentores no que diz respeito à elaboração de músicas, e sua genialidade, seu realismo, são suficientes para que os verdadeiros apreciadores do Hip-Hop o considerem e o venerem como tal.

Menções honrosas: Rather Unique, Gimme Your’s, Mo Money Mo Murder Mo Homicide

01. Intro
02. Uncut Raw
03. Gimme Yours (feat. Nas)
04. Ho-Happy Jackie
05. Rather Unique
06. I Feel for You
07. Sugar Hill
08. Mo Money, Mo Murder, Mo Homicide (feat. Nas)
09. Doe or Die
10. We Can't Win
11. Your World Don't Stop
12. Sugar Hill Remix
13. Gimme Yours (Erick Sermon Remix)*


GEAH!
http://www.4shared.com/file/9JVhYsRI/AZ_-_Doe_or_Die__1995_.html


*This incredible remix is just a little gift from this blog.